terça-feira, março 21, 2006
vale-tudo eleitoral
Onde foi parar a ética?
http://oglobo.globo.com/jornal/pais/192601672.asp
Um caseiro que acusa o principal ministro do governo tem o sigilo bancário quebrado sem ordem judicial, o presidente de um tribunal superior é candidato a governador e dá liminar interferindo em decisão de partido político, desembargadores fazem greve pelo nepotismo, o comandante do Exército manda parar um avião lotado para que um casal saia e lhe dê lugar. Nas últimas semanas, o país conviveu com uma escalada de atitudes que infringem a lei, a ética ou, no mínimo, atentam contra o bom senso. Para o jurista Hélio Bicudo, um petista desiludido, o país enfrenta uma crise institucional no país. Para outros especialistas, já está imperando um vale-tudo eleitoral, no qual a ética é deixada de lado.
— Tudo isso caracteriza uma crise institucional no país. As eleições podem resolver ou mesmo aprofundar essa crise. Se não houver uma reação clara das entidades civis, viveremos um tipo de chavismo no país. Na minha opinião, haverá um acordão, de modo que os ataques se tornem superficiais, um (candidato) acabará justificando o outro, enquanto a crise cresce. Podemos ter que contemplar por aí um tipo de populismo, como o de Hugo Chávez (presidente da Venezuela) — diz Bicudo.
Já a cientista política Maria Vitória Benevides avalia que a crise institucional na verdade já vem se arrastando na democracia brasileira e só ganhou visibilidade agora, por causa do ano eleitoral, que, segundo ela, começou sangrento e antecipadamente, dentro de um modelo que leva a uma malversação da democracia.
De acordo com Maria Vitória, a crise se refere muito mais à “nefasta tradição” do sistema presidencialista e pode ser resolvido com uma ampla reforma política. A cientista política é contrária à idéia de um sistema parlamentarista, mas considera a necessidade de modernização do presidencialismo, com controles mais efetivos, com separação maior entre os poderes.
— No nosso presidencialismo, as propostas se esgotam quando muda um governo. O anterior sempre vira terra arrasada. Precisamos de um poder que pense a política de Estado à longo prazo — disse Maria Vitória, que defende, juntamente com o jurista Fábio Konder Comparato, a criação de um Conselho de Planejamento, formado por representações da sociedade civil.
Para Maria Vitória, os abusos institucionais estão ocorrendo de todos os lados. Ela exemplifica o caso da suposta quebra ilegal de sigilo do caseiro:
— É evidente que há um abuso desse sistema. Mas não podem haver dois pesos e duas medidas. Não podem também querer quebrar o sigilo de Paulo Okamotto sem plena justificativa jurídica — disse.
O sociólogo Francisco de Oliveira também avalia que as instituições brasileiras estão ficando comprometidas. Mas, na avaliação dele, trata-se de um “vale-tudo eleitoral”, levado a cabo basicamente por dois partidos políticos: PT e PSDB. Segundo ele, o PSDB paga hoje o preço das práticas que iniciou no governo Fernando Henrique Cardoso.
— O PT é o aprendiz do feiticeiro que foi o PSDB. Mas estão exagerando na dose. E há ainda uma verdadeira politização da Justiça, o que é muito grave. Não se esperava isso de dois partidos assim, surgidos após uma ditadura militar. Creio que o vale-tudo se agravará nesta campanha, o que é perigoso — disse Oliveira.
Já os juristas Dalmo de Abreu Dallari e Celso Campilongo avaliam que não há crise institucional no país, mas sim uma antecipação da campanha eleitoral por causa da crise política do mensalão. Para Dallari, a crise demonstra apenas a necessidade de uma reforma política:
— Não existe uma crise institucional no Brasil. Os três poderes estão funcionando independentemente e não houve qualquer quebra da Constituição. Nossa democracia está muito bem consolidada. O que há no Brasil hoje é um começo antecipado da eleição. Quanto às decisões do Supremo Tribunal Federal, elas não foram políticas, mas formais.
— Se houve ou não uma quebra de sigilo pelo Poder Executivo, é preciso investigar e comprovar. Se houver provas concretas, o caseiro pode ser indenizado, depois da responsabilização de funcionários, da Caixa Econômica Federal, ou mesmo do governo, se ficar bem provado que houve pressão. Aí sim podemos falar que houve abuso ou desvio de poder, excesso de autoridade no estado de direito — disse Campilongo.
O jurista Célio Borja vê uma crise “tipicamente moral”:
— Os partidos se unem ou se combatem em razão de vantagens financeiras, quando não diretas, que se exprimem em cargos, em poder de contratar, de pagar, de punir. Isso enfraquece a idéia de que o Estado existe para servir ao cidadão, transforma os servidores do Estado em meros carreiristas. A moralidade pública, que se funda na predominância do bem comum, está em crise.
O coordenador do programa de pós-graduação em ciência política da Universidade Federal Fluminense (UFF), Eurico Lima Figueiredo, diz que o pessimismo é ruim porque leva à apatia, ao desengajamento, e lembra que, em média, 60% dos candidatos da legislatura anterior têm sido retirados da vida pública pelos eleitores. Para ele, o Brasil avançou no acesso à informação por parte do cidadão nos últimos 22 anos:
— Não existe mais impunidade. Ministros, juízes, parlamentares, militares da mais alta patente são vigiados e punidos. A pergunta é: como era antes? Como era na ditadura? Como era há 30, há 25 anos? Estamos melhores hoje? Estamos, não tenho dúvidas.
O diretor da Transparência Brasil, entidade voltada para o combate à corrupção, Cláudio Weber Abramo, discorda da tese de crise institucional. Segundo ele, o que está ocorrendo no Brasil é uma erosão do arcabouço constitucional do ponto de vista da credibilidade.
— Os poderes não têm feito juz à confiança popular depositada neles. Mas não creio que chegamos a uma crise institucional — disse Abramo.
Os fatos recentes preocupam entidades como a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e a Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB), além da Comissão de Ética Pública da Presidência da República e da Comissão de Constituição e Justiça da Câmara.
Para o presidente do Conselho Federal da OAB, Roberto Busato, o país atravessa uma crise de valores éticos e morais cuja origem está no escândalo do mensalão e na tibieza com que o governo Lula reagiu ao primeiro caso de corrupção envolvendo um membro do Palácio do Planalto: denúncias contra o ex-chefe de Assuntos Parlamentares da Casa Civil Waldomiro Diniz, em 2004.
— O país viveu a mais grave crise ético-política de sua História e agora está enfrentando seu efeito colateral, que é o descrédito em relação ao estado de direito — disse Busatto.
Para o presidente da AMB, Rodrigo Collaço, o clima é de vale-tudo:
— Sem ser moralista, acho que atravessamos um momento de degeneração da prática política. Conceitos mínimos de atuação na esfera pública têm sido desprezados em nome do vale-tudo.
A OAB e a AMB condenaram a violação do sigilo bancário do caseiro Francenildo Santos Costa . Na mesma linha, o presidente da Comissão de Ética Pública, Fernando Neves, cobrou a investigação e a punição dos responsáveis:
— É assustador, de uma violência que a gente fica atônito. É preciso apurar responsabilidades. O cidadão tem que ter a garantia de que isso não vai acontecer — afirmou Neves.
Busatto e Collaço criticaram o presidente do Superior Tribunal de Justiça, ministro Edson Vidigal, que é candidato declarado a governador do Maranhão e, mesmo assim, concedeu liminar para suspender as prévias do PMDB. A ação era de interesse direto do senador José Sarney (PMDB-AP).
— A função político-partidária é incompatível com a função judicial. Mais do que da liminar, que tecnicamente pode estar correta, sou crítico de sua aquiescência à candidatura enquanto ministro. Se é assim, que tivesse abandonado o cargo — disse Collaço.
Não é de hoje que o Supremo Tribunal Federal convive com situações inusitadas. O então ministro Francisco Rezek era ministro e presidiu o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) em 1989, quando Fernando Collor de Mello foi eleito presidente. Depois, Rezek deixou o Judiciário e virou ministro das Relações Exteriores de Collor. A seguir, saiu do governo e foi nomeado — por Collor — de volta ao Supremo.
A OAB e a AMB condenaram também a greve dos desembargadores de Minas Gerais, em protesto contra a proibição de contratar parentes e ao teto salarial de R$ 24.500 mensais.
http://oglobo.globo.com/jornal/pais/192601672.asp
Um caseiro que acusa o principal ministro do governo tem o sigilo bancário quebrado sem ordem judicial, o presidente de um tribunal superior é candidato a governador e dá liminar interferindo em decisão de partido político, desembargadores fazem greve pelo nepotismo, o comandante do Exército manda parar um avião lotado para que um casal saia e lhe dê lugar. Nas últimas semanas, o país conviveu com uma escalada de atitudes que infringem a lei, a ética ou, no mínimo, atentam contra o bom senso. Para o jurista Hélio Bicudo, um petista desiludido, o país enfrenta uma crise institucional no país. Para outros especialistas, já está imperando um vale-tudo eleitoral, no qual a ética é deixada de lado.
— Tudo isso caracteriza uma crise institucional no país. As eleições podem resolver ou mesmo aprofundar essa crise. Se não houver uma reação clara das entidades civis, viveremos um tipo de chavismo no país. Na minha opinião, haverá um acordão, de modo que os ataques se tornem superficiais, um (candidato) acabará justificando o outro, enquanto a crise cresce. Podemos ter que contemplar por aí um tipo de populismo, como o de Hugo Chávez (presidente da Venezuela) — diz Bicudo.
Já a cientista política Maria Vitória Benevides avalia que a crise institucional na verdade já vem se arrastando na democracia brasileira e só ganhou visibilidade agora, por causa do ano eleitoral, que, segundo ela, começou sangrento e antecipadamente, dentro de um modelo que leva a uma malversação da democracia.
De acordo com Maria Vitória, a crise se refere muito mais à “nefasta tradição” do sistema presidencialista e pode ser resolvido com uma ampla reforma política. A cientista política é contrária à idéia de um sistema parlamentarista, mas considera a necessidade de modernização do presidencialismo, com controles mais efetivos, com separação maior entre os poderes.
— No nosso presidencialismo, as propostas se esgotam quando muda um governo. O anterior sempre vira terra arrasada. Precisamos de um poder que pense a política de Estado à longo prazo — disse Maria Vitória, que defende, juntamente com o jurista Fábio Konder Comparato, a criação de um Conselho de Planejamento, formado por representações da sociedade civil.
Para Maria Vitória, os abusos institucionais estão ocorrendo de todos os lados. Ela exemplifica o caso da suposta quebra ilegal de sigilo do caseiro:
— É evidente que há um abuso desse sistema. Mas não podem haver dois pesos e duas medidas. Não podem também querer quebrar o sigilo de Paulo Okamotto sem plena justificativa jurídica — disse.
O sociólogo Francisco de Oliveira também avalia que as instituições brasileiras estão ficando comprometidas. Mas, na avaliação dele, trata-se de um “vale-tudo eleitoral”, levado a cabo basicamente por dois partidos políticos: PT e PSDB. Segundo ele, o PSDB paga hoje o preço das práticas que iniciou no governo Fernando Henrique Cardoso.
— O PT é o aprendiz do feiticeiro que foi o PSDB. Mas estão exagerando na dose. E há ainda uma verdadeira politização da Justiça, o que é muito grave. Não se esperava isso de dois partidos assim, surgidos após uma ditadura militar. Creio que o vale-tudo se agravará nesta campanha, o que é perigoso — disse Oliveira.
Já os juristas Dalmo de Abreu Dallari e Celso Campilongo avaliam que não há crise institucional no país, mas sim uma antecipação da campanha eleitoral por causa da crise política do mensalão. Para Dallari, a crise demonstra apenas a necessidade de uma reforma política:
— Não existe uma crise institucional no Brasil. Os três poderes estão funcionando independentemente e não houve qualquer quebra da Constituição. Nossa democracia está muito bem consolidada. O que há no Brasil hoje é um começo antecipado da eleição. Quanto às decisões do Supremo Tribunal Federal, elas não foram políticas, mas formais.
— Se houve ou não uma quebra de sigilo pelo Poder Executivo, é preciso investigar e comprovar. Se houver provas concretas, o caseiro pode ser indenizado, depois da responsabilização de funcionários, da Caixa Econômica Federal, ou mesmo do governo, se ficar bem provado que houve pressão. Aí sim podemos falar que houve abuso ou desvio de poder, excesso de autoridade no estado de direito — disse Campilongo.
O jurista Célio Borja vê uma crise “tipicamente moral”:
— Os partidos se unem ou se combatem em razão de vantagens financeiras, quando não diretas, que se exprimem em cargos, em poder de contratar, de pagar, de punir. Isso enfraquece a idéia de que o Estado existe para servir ao cidadão, transforma os servidores do Estado em meros carreiristas. A moralidade pública, que se funda na predominância do bem comum, está em crise.
O coordenador do programa de pós-graduação em ciência política da Universidade Federal Fluminense (UFF), Eurico Lima Figueiredo, diz que o pessimismo é ruim porque leva à apatia, ao desengajamento, e lembra que, em média, 60% dos candidatos da legislatura anterior têm sido retirados da vida pública pelos eleitores. Para ele, o Brasil avançou no acesso à informação por parte do cidadão nos últimos 22 anos:
— Não existe mais impunidade. Ministros, juízes, parlamentares, militares da mais alta patente são vigiados e punidos. A pergunta é: como era antes? Como era na ditadura? Como era há 30, há 25 anos? Estamos melhores hoje? Estamos, não tenho dúvidas.
O diretor da Transparência Brasil, entidade voltada para o combate à corrupção, Cláudio Weber Abramo, discorda da tese de crise institucional. Segundo ele, o que está ocorrendo no Brasil é uma erosão do arcabouço constitucional do ponto de vista da credibilidade.
— Os poderes não têm feito juz à confiança popular depositada neles. Mas não creio que chegamos a uma crise institucional — disse Abramo.
Os fatos recentes preocupam entidades como a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e a Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB), além da Comissão de Ética Pública da Presidência da República e da Comissão de Constituição e Justiça da Câmara.
Para o presidente do Conselho Federal da OAB, Roberto Busato, o país atravessa uma crise de valores éticos e morais cuja origem está no escândalo do mensalão e na tibieza com que o governo Lula reagiu ao primeiro caso de corrupção envolvendo um membro do Palácio do Planalto: denúncias contra o ex-chefe de Assuntos Parlamentares da Casa Civil Waldomiro Diniz, em 2004.
— O país viveu a mais grave crise ético-política de sua História e agora está enfrentando seu efeito colateral, que é o descrédito em relação ao estado de direito — disse Busatto.
Para o presidente da AMB, Rodrigo Collaço, o clima é de vale-tudo:
— Sem ser moralista, acho que atravessamos um momento de degeneração da prática política. Conceitos mínimos de atuação na esfera pública têm sido desprezados em nome do vale-tudo.
A OAB e a AMB condenaram a violação do sigilo bancário do caseiro Francenildo Santos Costa . Na mesma linha, o presidente da Comissão de Ética Pública, Fernando Neves, cobrou a investigação e a punição dos responsáveis:
— É assustador, de uma violência que a gente fica atônito. É preciso apurar responsabilidades. O cidadão tem que ter a garantia de que isso não vai acontecer — afirmou Neves.
Busatto e Collaço criticaram o presidente do Superior Tribunal de Justiça, ministro Edson Vidigal, que é candidato declarado a governador do Maranhão e, mesmo assim, concedeu liminar para suspender as prévias do PMDB. A ação era de interesse direto do senador José Sarney (PMDB-AP).
— A função político-partidária é incompatível com a função judicial. Mais do que da liminar, que tecnicamente pode estar correta, sou crítico de sua aquiescência à candidatura enquanto ministro. Se é assim, que tivesse abandonado o cargo — disse Collaço.
Não é de hoje que o Supremo Tribunal Federal convive com situações inusitadas. O então ministro Francisco Rezek era ministro e presidiu o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) em 1989, quando Fernando Collor de Mello foi eleito presidente. Depois, Rezek deixou o Judiciário e virou ministro das Relações Exteriores de Collor. A seguir, saiu do governo e foi nomeado — por Collor — de volta ao Supremo.
A OAB e a AMB condenaram também a greve dos desembargadores de Minas Gerais, em protesto contra a proibição de contratar parentes e ao teto salarial de R$ 24.500 mensais.